Eles saltaram do bonde
a vapor ainda em movimento e se dirigiram a uma grande porta de madeira que os
levaria ao destino que eles preferiam evitar. Atrás da porta um estreito beco,
do tipo nunca frequentado por homens de boa índole. O beco cheirava a urina,
fezes e podridão. As bases das paredes, desgastadas pela ação prolongada do
ácido úrico, faziam com que estas dançassem com o forte vento daquela noite,
parecendo tão distantes da sobriedade quanto aqueles que as desgastavam
constantemente. Com passos firmes entre aqueles que não mais conseguiam firmar
as pernas, passavam duas sombras.
— Sinto pena dessas
pessoas, sabia?
— Eu não. Eu sinto
asco! E aqui não é um bom lugar pra conversar.
— Às vezes acho que
nenhum lugar mais é.
A dupla de detetives
passou pelo beco sem outras palavras, exceto as que os sentidos teimavam em
tentar trazer ao consciente e a hipocrisia escondia sob o tapete, com as
desculpas de "não há mais salvação" e "eles escolheram o próprio
caminho".
— Chegamos.
Ao fundo um globo de
luz brilhava, vermelho. O fluorescente líquido interno não o preenchia
completamente, sinal de que houvera (e talvez ainda houvesse) algum vazamento.
Os dois seguranças embaixo do globo, guardando a porta, não aparentavam medo da
morte horrível que todos sabiam que um vazamento causaria a qualquer humano,
sinal de que o problema já era passado. Ou que a longevidade não era uma
preocupação típica daquele tipo de pessoa. Nenhum dos detetives saberia o exato
motivo, um por experiência demais, o outro por experiência de menos. Foi um
daqueles seguranças que barrou os detetives:
— Perdidos, senhores?
O sotaque causou
estranhamento ao detetive mais jovem. Ele falava como um russo, mas suas
feições não demonstravam tal origem. Era, talvez, egípcio, ou indiano.
Estrangeiros de pele escura realmente não eram sua especialidade. A ciência
dizia que eram inferiores e ele não encontrava motivo para discordar. O outro
detetive tomou a frente e a palavra.
— Garanto que não nos
perdemos, senhores. Na verdade procuramos por diversão, e acredito que acabamos
de encontrá-la.
— E o que te dá essa
certeza?
— Ora, nós não
chegaríamos até esta porta sem detalhadas instruções de um confiável amigo. Um
amigo que nos disse que haveria aqui um grande cientista, dado como
desaparecido, e seu sábio patrono, um homem de visão, um homem que nos venderá
grandes e belos sonhos, pela quantia certa.
Os seguranças se
entreolharam.
— E seu amigo te disse
a senha?
— Sandman.
Novamente os
seguranças se entreolharam, e o que estava próximo à porta tirou uma chave do
bolso. A porta foi aberta. Agora não havia mais volta.
Os detetives entraram
e, ainda que a noite estivesse escura la fora, os olhos demoraram a se
acostumar à nova realidade. O salão era completamente iluminado por luz negra,
com um palco no meio do salão e diversas mesas ao redor, todas ocupadas. No
palco uma dançarina seminua se exibia ao som do sax, num melancólico teatro de
lentos movimentos.
Quando conseguiram ver
melhor o lugar foram para o bar, à direita do palco. O bartender parecia
hipnotizado pela mulher no palco, e demorou a atendê-los. Ao menos
ofereceu-lhes um sorriso falso.
— O que desejam?
— Sonhos.
O sorriso morreu.
— Procurem em seus
travesseiros.
— São desconfortáveis.
O sorriso voltou.
— E por quê eu lhes
daria?
— Porque podemos
pagar.
O jovem detetive se
espantou com a resposta. Aparentemente as senhas haviam acabado, e aquela
última pergunta era uma dúvida legítima. O contato do outro detetive devia ser
muito bom para passar tantas informações, e sua memória ainda melhor, para
responder tudo com tamanha naturalidade.
Após esta resposta, o
bartender os levou por outra porta, escondida atrás de uma cortina, ao lado do
bar. Desceram uma escadaria até uma sala minimalista, de paredes azul marinho
com 4 poltronas pretas confortáveis dispostas em círculo, cada uma de frente
para as outras, como um convite a uma reunião de amigos. O próprio bartender se
sentou em uma, e fez sinal para que os detetives se sentassem nas outras. Se
sentaram um de cada lado do bartender, que falou:
— Estes sonhos são
poderosos. Por isso o primeiro uso acontece aqui, onde podemos garantir sua
segurança.
Quando o detetive mais
jovem pensou em protestar, o outro falou.
— De acordo.
O jovem empalideceu.
Não lhe informaram que precisaria fazer algo assim. Na verdade, ficara tão
ansioso por trabalhar com um detetive renomado que quase nada se informou.
O bartender pegou um
pequeno frasco, com um pó amarelado.
— Bem, esta é a areia
dos sonhos. — Ele a ofereceu ao detetive mais jovem, que sequer sabia como a
utilizar. — Você parece perdido, rapaz. Deixe-me mostrar como funciona.
O bartender então
pegou sua cabeça com uma força que não parecia ter, deitou-a para trás e
despejou alguns grãos do pó sobre os olhos do detetive. O ardor foi
insuportável, porém rápido. O alívio, imediato. O mundo começou a dançar à sua
volta, como se estivesse na segunda garrafa de conhaque. E então vieram os
sonhos. Ele olhava para as paredes e elas não existiam. Ele podia ver os
esgotos ao redor da sala, grandes salões sob a terra, com ratos e outros
animais se movendo pelos espaços fechados. Ao olhar para cima viu a garota
terminando sua apresentação. Ele a preferia nua, e era como ela se apresentava.
Então a visão voltou ao normal. O bartender e o outro detetive o observavam com
curiosidade, e foi este último que perguntou:
— Já voltou?
Ainda sentindo-se
embriagado, ele respondeu:
— A visão sim. Mas o
mundo ainda gira.
— Quer mais um pouco?
— era o bartender — A dose que você experimentou era muito pequena.
Ele pensou em dizer
não. Ele até mesmo tentou.
— Sim.
O jovem detetive não
estava bem o suficiente para acompanhar as trocas de olhares entre os outros
dois, mas ainda assim a conversa soou estranha.
— Você piorou os
efeitos colaterais e diminuiu o tempo do sonho.
— Ao menos a fórmula
está mais barata.
— E novamente vai para
as ruas.
— Vai dar lucro.
— Não é esse lucro que
eu procuro.
— Não se preocupe. O
cientista vai encontrar a fórmula certa pra te tornar um super detetive. Só não
sei por quê essa sua vontade. Dinheiro não é poder suficiente pra você?
— O que eu quero o
dinheiro não compra.
— E o que a gente faz
com ele?
— O mesmo dos outros.
Uma overdose de mnemofluor. Depois disso ele nem vai mais conseguir organizar
os pensamentos.
...
Para ele, não há mais
salvação.
O segundo conto Steampunk, esse mais puxado para o suspense
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