Dentro daquele inferno
cristão havia apenas um homem. Alto, forte e resistente, adaptado àquele
trabalho que poucos conseguiriam suportar. Pegou a pá, que estava tão quente
que outros humanos não conseguiriam fazer o mesmo, ao menos não sem um grito de
dor e uma desesperada busca por ataduras. Seu corpo, porém, estava acostumado
ao calor e não se queimava mais. A pele, já definitivamente avermelhada pelo
contato contínuo com tão altas temperaturas, tornara-se resistente aos efeitos
deste calor quase a um nível sobre-humano. Pegou mais uma grande porção de
carvânico, um tipo de carvão concentrado criado pelos cientistas de sua época,
que queimava por muito mais tempo e muito mais quente que o carvão comum, e que
era muito mais pesado também, ao ponto de crianças desafiarem umas às outras em
desafios de força, a tentarem erguer mais de um torrão ao mesmo tempo — e
muitas não levantavam sequer o primeiro torrão. Ele alimentou a fornalha e
ficou observando as chamas. Já a 12 horas estava ali. Não sabia o que
transportavam, mas sabia que era algo importante, e no fundo orgulhava-se de
fazer parte daquela comitiva, ainda que de modo anônimo. Pois ele sabia que
eram realmente poucos os que conseguiriam fazer o seu trabalho, e da maneira
como ele o fazia.
E por isso era ele o
responsável pela fornalha daquele trem.
Porque havia muita
pressa e poucas mãos. E nenhuma mais forte ou resistente do que a dele.
~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~
No teto do terceiro
vagão havia uma abertura, para quem precisasse subir no trem a partir da parte
de dentro. Normalmente era utilizada para limpeza, mas dessa vez não. Dessa vez
ela fora aberta com a locomotiva em movimento, e um exímio atirador limpava seu
rifle sentado, tranquilamente, no teto do trem em movimento. A velocidade era constante
— a máxima — o que facilitava um cálculo mais tranquilo da velocidade do vento
e de sua influência sobre as balas que seriam disparadas. E não havia dúvidas,
elas seriam disparadas. Sua intuição nunca mentia.
Ele observou a arma,
olhou para as outras duas à cintura, e gostou do que via. Testou o maquinário
das duas armas ocultas nas mangas, e aproveitou para observar a luz do sol no
brilho prateado das duas. Guardou o rifle no coldre magnético das costas e
pegou o outro rifle das costas para iniciar sua limpeza. Números ímpares lhe
davam azar, e por isso suas armas eram sempre em pares. Sempre armas gêmeas.
Assim como eram dois os seus olhos, e funcionavam ambos muito bem. E por
funcionarem tão bem eles viram o que vinha atrás do trem, distinguindo seus
inimigos, seus rostos e suas armas, a uma distância que impossibilitaria outros
de fazerem o mesmo. Mas ele não era os outros. Para tristeza dos que se
aproximavam.
Tomou um gole do
whisky amargo e vagabundo, olhou para o lado e a tranquilidade desapareceu.
Hora de trabalhar.
~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~
Ela palitava os dentes
com uma bela faca, completamente feita de metal. Até mesmo o cabo. Metal negro.
O conjunto de 5 facas
havia sido presente do cientista, feito com o que restara da invenção que carregavam.
O metal era precioso demais ser deixado sem forma, segundo ele. Ela sabia que
ele estava querendo algo mais com isso, ainda que não fosse realmente tentar
alguma coisa. Era sua melhor arma aquela, a mais afiada — a sedução. Seguida de
perto pela falsa inocência. Quando mais jovem costumava ficar chateada pelo
lento desenvolvimento do seu corpo, insegura quando se comparava com as amigas,
mas o tempo provou que aquilo vinha a seu favor. Afinal, seus rosto e corpo
infantis permitiam que ela se fingisse de indefesa sempre que necessário. E
quando resolvida ser sensual não importava o corpo, apenas ser mulher era
suficiente contra a grande maioria dos homens.
Ela observou novamente
a faca, sentiu seu peso balanceado, e a atirou contra a porta do vagão. O
estranho metal negro perfurou o aço como se fosse manteiga em 5 lugares
diferentes, as 5 facas formando um círculo perfeito. Um observador atento não a
teria visto sacar as outras facas. Ela esticou a mão na direção das facas, uma
de cada vez, e elas voaram de volta à sua mão. Um tipo diferente de magnetismo,
muito forte e preciso, que apenas funcionava com aquele metal. Através dos
buracos, seu olhar encontrara o do cientista. Talvez ele conseguisse o que
queria. Seria bom ter uma reserva maior destas belezas afiadas.
E já havia feito mais
por menos para chegar até ali.
~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~
O cientista vivia um
misto de preocupação e ansiedade. Aquele não era o seu estilo de vida, não era
um aventureiro, sempre na tênue linha entre a vida e a morte, decidindo isso na
força, precisão ou velocidade das mãos. Ele sobrevivia com o cérebro, e ainda
que os pensamentos sejam rápidos, a velocidade do raciocínio nunca é igual à
agilidade da execução. Fato especialmente verídico, no caso dele. No
entanto, mesmo com a vida em risco, sabia que a preocupação era maior do que
deveria. Estava com os melhores, afinal. E caso eles não fossem suficientes,
bem, nesse caso ele faria o teste prático de sua invenção, e se ISSO não fosse
suficiente para salvar sua vida, bem, então não seria também importante o
suficiente para justificar tal empreitada. Entretanto, a empresa existia.
E enquanto ele
devaneava sobre sua capacidade e como ele usaria isso para chegar à bela jovem
do outro lado da porta, o trem tremeu, se inclinou e tombou, ainda em
movimento. Pois nenhuma arma ou lenda conseguiria impedir um avião à distância,
quando este seguia convicto em direção a um destino e, literalmente, se atirava
sobre ele.
~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~•~
No horizonte via-se a
cidadela do cobre, para onde se encaminhava a locomotiva. Mas ela não chegaria
ao seu destino.
No lado de dentro das
ferragens, o atirador sentia a fisgada na perna esmagada e, com certeza,
perfurada. A garota conseguira sair com o cientista, graças a ele — e à
agilidade felina da moça, tinha de assumir — mas ele não. Os dois grandes
carros os alcançaram, e chegaram atirando. Várias motos chegaram também,
reforçando o grupo inimigo. Na verdade, eles já pareciam um pequeno exército.
Os tiros foram bloqueados por uma grande placa de metal sustentada pelos braços
de um homem moreno-avermelhado, e ela reconheceu no instante seguinte a porta
do primeiro vagão, a porta da fornalha. A porta do inferno.
Deixando o cientista
em segurança atrás do escudo improvisado ela correu lateralmente, arremessando
uma faca, que atravessou o peito de um dos atiradores inimigos. A faca ainda
voou por um momento, dois atiradores ao lado do morto miraram nela, e ela
esticou o braço. A faca, ainda no ar, girou numa parábola e retornou para
atravessar um segundo atirador. Ela não parara de correr, para evitar os tiros
do terceiro inimigo, mas estes não vieram. O inimigo, assim como outros 5 ao
redor dele, estavam caindo com tiros no peito ou na cabeça.
Até que era útil ter
um exímio atirador no próprio time também.
Vendo que ele
precisaria de tempo para recarregar suas pistolas, ela puxou as outras 4 facas
e se colocou entre o aliado caído e os inimigos. E só então percebeu o
cientista encolhido debaixo do grandalhão, que se esforçava por protege-lo. Ela
arremessou as facas enquanto corria na direção dos inimigos, se desviando dos
tiros. Foi atingida no braço esquerdo, mas ainda tinha o outro braço, o que
deveria ser suficiente. Ela pulava como um macaco entre os inimigos, recebendo
apenas ferimentos de raspão enquanto os derrubada. O fato era que, enquanto
eram úteis a distância, também eram inúteis àquela distância as armas inimigas.
Principalmente porque, cada vez que erravam um tiro, atingiam um aliado ao
invés da inimiga.
O esforço, porém,
aumentava sua circulação sanguínea, e os ferimentos jorravam o precioso líquido
vermelho. E ela enfraquecia. E a velocidade diminuía.
Quando achou, porém,
que não conseguiria mais lutar, percebeu que também não precisaria. Pois um
tiro na lateral da cá cabeça do inimigo à sua frente mostrou a ela que o
atirador estava pronto novamente. Ela recuou de costas, ainda lutando, enquanto
balas zuniam bem próximas de suas orelhas, nunca precisando de dois tiros no
mesmo oponente. Chegando de volta ao que restara do trem ela viu o motivo da
demora para a recarga. O atirador não apenas havia recarregado suas armas, mas
também se posicionado de forma melhor. O grandalhão aproveitara a distração dos
inimigos — ou seja, ela — para tirar o atirador das ferragens. Ele agora
atirava escondido, utilizando pós destroços como trincheira. O cientista ainda
se encolhia de medo, até que a ponta de uma bota encontrou seu estômago.
"Nós estamos
morrendo por uma arma que não serve pra nada?"
O pânico havia falado
mais alto, e apenas aquele chute o tirara do torpor que a surpresa causa a quem
não está acostumado a combates. O cientista, então, apalpou os bolsos e
encontrou dois pequenos cilindros metálicos, que enfiou em equipamentos presos
aos antebraços, por dentro das mangas. E apertou um botão na placa que trazia
no peito, também por baixo da roupa. E um grande estrondo de metais de batendo
veio de dentro do carro-laboratório. No segundo estrondo o teto se rasgou.
O terceiro estrondo
foi a saída definitiva daquela armadura negra.
A garota não saberia
dizer se sentia deslumbre ou angústia. E depois soube dizer. Sentia medo.
Uma faca atravessara
sua garganta, indo se fincar aos pés do cientista. O metal da armadura era o
mesmo das facas. O magnetismo era o mesmo também.
Em choque, o cientista
soltou o botão do cinto, e a armadura foi ao chão. Sem alguém que lhe desse
cobertura, o atirador foi cercado pelos inimigos e fuzilado. Era perigoso
demais para sobreviver. O cientista e o grandalhão haviam sido rendidos. Até
que o grandalhão esmagou a cabeça do cientista contra a ferragem mais próxima.
"Vocês podem
roubar a tecnologia, mas não o conhecimento." - E ainda matou uma dúzia de
inimigos antes de o matarem.
A missão, porém, tinha
sido um sucesso. Afinal, a sociedade continuaria refém do vapor. E do carvânico.
Além do mais, o grupo ouvira dizer que o tal cientista tinha um aprendiz. E a
informação era quase correta. Era UMA aprendiz.
E até que ela fosse
encontrada, os segredos da eletricidade e do eletromagnetismo estariam bem
guardados nas mãos de sujos colecionadores.
Começando a colocar os contos de Steampunk no blog
ResponderExcluirTemos que mudar a temática da página tb...